Escola Guignard OITENTA ANOS – DEPOIMENTOS

A Escola Guignard através do tempo

Escola Guignard OITENTA ANOS – DEPOIMENTOS Fotos: ARQUIVO PESSOAL

Antônio de Paiva Moura Escritor, 2024 -Ex-diretor e professora da Guignard

A Escola Guignard, em seus 80 anos de existência, passou por cinco períodos bem definidos e significativos. Nasceu como escola pública de arte; foi anômica, sem registro ou regime de qualquer natureza; sociedade civil, com estatuto registrado em cartório; Escola pública estadual de artes, e, finalmente, unidade de universidade pública.

A escola resultou de um desejo de Juscelino Kubitschek havia vivido na França, cursando extensa em Medicina. O contato com intelectuais e artistas modernos n Europa contribuiu pra seu aprimoramento cultural. De volta a Belo Horizonte, resolveu lutar para mudar a realidade conservadora da cidade. Como prefeito de Belo Horizonte realizou diversas obras, buscando a modernização e ai, incluiu a criação da Escola pública municipal, em 28 de fevereiro de 1943.  Oscar Niemeyer indicou a ele o nome de Guignard para atuar como professor diretor da Escola de Belas Artes. Guignard dava à escola um caráter de cursos livres e mantinha uma relação amistosa com seus alunos. Modernistas do Rio de Janeiro e de São Paulo vinham a Belo Horizonte para conhecer o trabalho de Guignard e também fazer os ditos cursos livres. O prefeito Franzem de Lima, sucessor de Juscelino Kubitschek, manteve a escola, mas limitou em três o número de professores.

A segunda fase começa em 1948, quando o prefeito de Belo Horizonte era Otacílio Negrão de Lima, anti-modernista intransigente, revogou os atos de Juscelino e Franzem de Lima; demitiu os professores e despejou a escola do imóvel que ocupava no Parque Municipal. Sem ter para onde ir, Guignard e seus alunos insistiu em continuar os cursos livres em imóveis cedidos por amigos. Era um grupo anômico, sem nenhuma espécie registro. Os alunos é que administravam a Escola, buscando recursos com rifas e quermesses. Esse período foi importante porque provocou a coesão de alunos e importante segmento da sociedade. Não fosse isso, Guignard teria ido embora e a escola acabado.

O terceiro momento tem início em 1950, quando a Escola começou a receber subvenção da Loteria do Estado de Minas Gerais, mas para tal, foi obrigada a ter estatuto registrado em cartório, com a obrigação de eleger periodicamente o cargo de diretor, o que coube a Guignard, até pouco antes de falecer em 1962. Os professores e funcionários passaram a ser remunerados, com subvenções do governo do Estado e da referida loteria. Os cursos continuavam livres, sem ter uma periodicidade certa e fornecer aos alunos nenhum documento de conclusão. Após a morte de Guignard, em 25-06-1962, a Escola estava consolidada. Os alunos que por ela haviam passado eram muito prestigiados e bem realizados como artistas. Graças a esse bom nome, despertou no governo estadual, o interesse em ampará-la de forma definitiva.

A quarta fase é a partir de 1966, quando o governo estadual sancionou duas leis incorporando a Escola à Imprensa Oficial. Foi um período muito profícuo. Os professores foram remunerados com regularidade, com garantia de estabilidade e demais direitos. Proporcionou o reconhecimento dos cursos de Artes Plásticas na categoria bacharelado e de licenciatura para o ensino de artes de primeiro e segundos graus; disponibilidade de materiais e instrumental didáticos. Alunos e ex-alunos participavam dos mais categorizados salões e bienais de arte. A comunidade acadêmica recebeu do Estado para conseguir recursos para a construção da sede própria da Escola.

O quinto e último período começa em 1994, com a incorporação da Escola à UEMG, como unidade de ensino superior de artes plásticas e educação artística. Os professores passaram a ter carreira de magistério na mesma forma dos reconhecimentos anteriores.

 

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Minha experiência na Escola Guignard

Marília Andrés Ribeiro Historiadora da Arte, 2024 e ex-aluna da Guignard

Fui convidada para escrever sobre a minha experiência na Escola Guignard visando a comemoração dos 80 anos desta Escola. Como frequentei a Escola nos anos 1970 resolvi fazer um recorte de minha vivência como aluna e historiadora das artes visuais em Belo Horizonte, focalizando os anos 1960/1970.

Na década de 1970 eu estudava Filosofia na FAFICH e frequentava a Escola Guignard. Lembro que descia as escadas do parque até o porão que ficava embaixo do Palácio das Artes, onde era sediada a Escola. Lá eu me encontrava com a turma do banquinho, formada por Eymard Brandão, Selma Weissmann, Manoel Serpa, George e Thaís Helt, Celene Brant, Enezila e Maria Emília Campos, entre outros. Ali, trocávamos ideias sobre arte, exposições e eventos culturais.

Estudei desenho com Solange Botelho, cerâmica com Lizette Meimberg, história da arte com Pierre Santos, gravura em metal com George Helt e litografia com Lotus Lobo. Mas, o que mais me fascinava eram as experiências com a gravura em metal e a litografia, além das conversas com os professores que também eram meus amigos. Acompanhei as incursões de George Helt na produção dos audiovisuais e as pesquisas de Lotus Lobo no campo da litografia. Naquele momento a Escola era um celeiro de jovens artistas que buscavam novas experiências artísticas no espaço aberto para a arte contemporânea e tornou-se um local de resistência à ditadura civil e militar implantada no Brasil desde 1964.

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Ali, era um espaço de liberdade onde se encontravam artistas e críticos militantes como Frederico Morais, Márcio Sampaio, Olívio Tavares Araújo, Mari’Stella Tristão, Lotus Lobo, Teresinha Soares,  Manoel Serpa, Manfredo Souzanetto, George Helt, Luciano Gusmão, Dilton Araújo e José Ronaldo Lima, entre outros que atuaram nos eventos de inauguração do Palácio das Artes, em 1970. Aqueles artistas e críticos participaram da exposição inaugural “Objeto e participação” realizada nas galerias do Palácio das Artes e do evento “Do Corpo à Terra” que ocorreu no Parque Municipal, nas ruas da cidade e na Serra do Curral.

Aqueles eventos tornaram-se um marco significativo da arte contemporânea na cidade e serviram de baliza para a minha tese de doutorado sobre as neovanguardas artísticas de Belo Horizonte nos anos 1960[1]. Nesta tese, eu defendo a emergência de uma nova vanguarda na cidade, acompanhando os movimentos artísticos que aconteciam no eixo Rio/São Paulo. Aquela nova vanguarda era formada por artistas, críticos e professores que atuavam em espaços de resistência como o Museu de Arte da Pampulha, a Reitoria da UFMG, o Palácio das Artes e os Festivais de inverno de Ouro Preto.

No caso da inauguração do Palácio das Artes havia um diálogo entre artistas de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, estabelecido através da atuação dos críticos Frederico Morais e Mari’Stella Tristão. Mari’Stella, que era responsável pelos eventos de inauguração do novo espaço cultural da cidade, realizou uma exposição retrospectiva sobre a evolução das artes plásticas em Minas Gerais, desde o barroco até a arte moderna[2]. Mas, convidou Frederico Morais para coordenar uma outra exposição com os jovens artistas da cidade, que resultou nos eventos mencionados acima, acompanhado de um manifesto político Do Corpo à terra, publicado no jornal Estado de Minas[3]. Aqueles eventos questionavam os parâmetros estabelecidos pela arte moderna em prol de uma

abertura para as questões da arte contemporânea, tais como as questões políticas, comportamentais e ambientais discutidas naquele momento. Foi através dos objetos, das instalações, intervenções e performances que os jovens artistas e críticos fizeram suas proposições artísticas.

Os artistas mineiros, oriundos da Escola Guignard, participaram discutindo diversas questões. Teresinha Soares, apresentou a instalação “Cama”, onde ela discutia a questão do empoderamento da mulher; Lotus Lobo, plantou milho no parque municipal, chamando a atenção para a questão ecológica; George Helt, fez a intervenção “Vamos caminhar” no espaço de entrada do Palácio das Artes, onde expôs as marcas litográficas de seu corpo impressas numa faixa de papel;  Manfredo Souzanetto e Manoel Serpa construíram uma escultura monumental de um pregador em madeira, mostrando a violência contida em um objeto cotidiano; Luciano Gusmão e Dilton Araújo delimitaram com cordas os espaços de liberdade no parque municipal; José Ronaldo Lima apresentou as “Caixas olfativas” na Galeria do Palácio das Artes  e realizou a intervenção “Gramática amarela” no parque municipal; Dileny Campos chamou atenção para as “Subpaisagens” que apareciam entre as fendas do passeio em construção na Avenida Afonso Pena e  Décio Noviello lançou fumaças coloridas dentro e fora do Palácio das Artes, que até então eram proibidas fora do circuito militar.

Outros artistas, que vieram do Rio, dialogaram com os mineiros, apresentando várias propostas questionadoras: Theresa Simões deixou marcas de carimbos com palavras revolucionárias nas paredes e vidros da Grande Galeria; Umberto Costa Barros fez uma instalação nos porões do Palácio das Artes com as sobras de materiais de sua construção; Carlos Vergara mostrou caixas de papelão corrugadas com figuras recortadas de pessoas comportando como bonecos enfilheirados; Ione Saldanha apresentou suas instalações lúdicas com bambus coloridos; Franz Weissmann construiu uma enorme instalação de ferro – Labirinto Linear – chamando a atenção para a possibilidade de criação de uma escultura habitável; Cildo Meirelles queimou animais na fogueira e Artur Barrio jogou trouxas de carne e sangue no ribeirão do parque, ambos protestando contra  a tortura  e a morte dos presos políticos naqueles anos de chumbo.

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Lee Jaffe executou a proposta de Hélio Oiticica e colocou uma fileira de açúcar na serra do Curral, chamando a atenção para a destruição das montanhas de Minas. E Frederico Morais, apresentou uma nova crítica militante, atuando também como artista, através da proposta Quinze lições sobre arte e história da arte, que foram intervenções fotográficas realizadas nos espaços da cidade e do parque municipal, discutindo a questão da crítica, da história e do museu contemporâneo.

O que importava naquele momento eram as propostos conceituais, processuais e experimentais que se situavam nas fissuras, nos espaços entreabertos, nas emboscadas, denominadas por Frederico Morais como Arte Guerrilha, configurando a formação da arte contemporânea não só em Belo Horizonte, mas também no Brasil.

Em 2001 foi realizada a exposição Do Corpo à Terra: Um marco radical na Arte Brasileira, através do Itaú Cultural/BH, com a curadoria de Frederico Morais, registrando através de fotografias e depoimentos do próprio crítico, aquele momento impar da história da arte brasileira.

Em 2007 foi organizada a exposição Neovanguardas, no Museu de Arte da Pampulha, com curadoria de Marconi Drummond, Márcio Sampaio e a minha participação, retomando o momento histórico de configuração da arte contemporânea em Belo Horizonte. A exposição Neovanguardas revisitou os eventos que aconteceram em outros espaços culturais da cidade, as propostas dos artistas e dos críticos de vanguarda, constituindo também um marco importante na história da arte brasileira.

Concluindo, acredito que a minha atuação como historiadora, crítica e curadora tem a sua origem na minha formação e na minha vivência na Escola Guignard, que continua, até hoje, com uma atuação importante na formação de artistas, críticos e curadores e também na vida cultural da cidade.

 

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A Escola Guignard em minha vida

 

Rafael Perpétuo Coordenador do Museu de Arte da Pampulha Doutorando em Artes pela UFMG , 2024 – Ex-aluno da Guignard

Escrevo hoje sobre minha experiência na Escola Guignard, no mesmo dia que soube que meu grande amigo Felipe Ambrósio, designer e reconhecido caligrafista, me conta que foi aprovado no vestibular para Artes Plásticas. Que coincidência incrível! Um impulso para 20 anos atrás, pois, em 2004 eu não passei no vestibular. Apesar de facultado nas provas de habilidades específicas de desenho, “tomei pau” em matemática… o eterno suplício das pessoas de Humanas! Queria tanto estar lá que, naquele mesmo ano, passei a frequentar a Escola, indo a “Pintura de Calouros”, a festa junina, algumas palestras e as muitas vezes que me fingi de aluno para assistir as aulas de História da Arte, quando ficava ao fundo da sala para que os professores não me vissem: com Paulo Tavares era mais fácil, pois a sala escura e o tilintar dos slides encafuavam minha presença; já Ronan Couto me pegou algumas vezes com seu sarcasmo matinal, já que, enquanto eu queria entrar, alguns tentavam fugir.

No mesmo ano consegui a aprovação – com a nota mínima em matemática – e entrei no próximo ano. Preciso confessar que no ônibus indo fazer a prova de desenho, portando meus lápis 2B – desprovido de borracha como mestre Guignard decretava – conheci minha companheira de ofício dos próximos 18 anos, Wanda Mucchiut, onde fomos parceiros na Superintendência de Museus do estado, Museu Mineiro e, por fim, Museu de Arte da Pampulha. Transitei pelas turmas da tarde, manhã e por fim, noite, onde bacharelei. Lá travei com outros colegas que continuam a flutuar pela arte, como Márcia Renó, Gustavo Maia, Noemi Assumpção, Efe Godoy, Carol Botura, Felipe Franco de Ávila, entre outros.

O primeiro professor que me acolheu foi Sebastião Miguel. Haviam acabado de criar um laboratório de informática/artes gráficas onde fiz meus primeiros experimentos visuais. Miguel sempre foi um Guia para mim, com sua sensibilidade e conhecimento, me orientado, falando da vida, dando caronas, sendo orientador de minha Iniciação Científica e depois como parte da banca de meu mestrado na UFMG. Sou muito grato por isso.

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Como passei por três turmas diferentes, encontrei com praticamente todas professoras e professores do bacharelado, sei que irei esquecer alguns mas vou lembrar sempre de muitos: Thaïs Helt, Edna Moura, Paulo Amaral, Marco Tulio Resende, Zenir Amorim, Sônia Assis, Sônia Labouriau, Nara Firme – que me ensinou a litografia da qual me formei e sou apaixonado -, Laura Belém, Roberto Gusmão, Luzia Gontijo, Mary Lane Amaral, Fabíola Tasca, Carlos Wolney, Julia Portes, Gouveia, Maria Emília Campos, Lorena D’arc, Solange Pessoa, Daniela Goulart.

Nesse período fui estagiário do Museu Mineiro, orientado pelo saudoso amigo Francisco Magalhães, uma saudade nunca cessará. Mas logo em seguida, fui convidado para trabalhar na Escola, época em que Eymard Brandão era seu diretor – curiosamente nunca foi meu professor. Com ele tive um grande aprendizado, que curiosamente me levava tanto a conhecer as estruturas do Estado quanto do circuito da arte, onde hoje encontrei meu lugar. Continuamos a trabalhar juntos depois e estreitamos uma amizade. Acho que talvez esse é o grande privilégio de nossa Escola: trabalhar e tecer amizades.

Aliás, meus colegas de Federal muitas vezes entoavam o quanto “invejavam” a liberdade da Escola Guignard: a experimentação, o desenho livre, a expressão como fundamento. Os ensinamentos do mestre Guignard tinham no labor e na livre invenção, um espírito que, ainda hoje, é parte intrínseca em ser um “guignardiano”. O que se reflete na própria arquitetura do atual edifício. O projeto de Gustavo Penna, com todo seu arrojo e desafios, encanta até quem ia passear na praça da Escola. Lá do alto do bairro Mangabeiras se vê a paisagem bucólica e singular, onde todos que vão ali pela primeira vez visar o horizonte, refletem sobre o quão linda é nossa cidade e como somos apenas poeira.

De lá aprendi a implementar museus, produzir e montar exposições em todos os rincões do estado e do país. Fui coordenador do Museu Mineiro – minha primeira casa como estagiário – e hoje, sou coordenador de um dos museus mais importantes do país, o MAP. Todos me perguntam se ainda produzo. Pois, de artista promissor que fui, sempre me sentia deslocado, pois gostava muito mais de arrumar a casa no dia a dia, projetando e sonhando, a ficar no ateliê. Então minha arte que nunca me deixou, tornou-se de vez a escrita, e desta, a curadoria e a gestão cultural. Só agradeço aos que me ajudaram nesse caminho e a Escola que nunca me abandonou e levo no peito, com orgulho, falando para paulistas e cariocas de onde venho. Espero ter a honra de um dia retribuir, como professor da Escola Guignard. Afinal, somos todos filhos, netos, e bisnetos de Guignard e, nossa árvore genealógica é de muito orgulho.

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2 thoughts on “Escola Guignard OITENTA ANOS – DEPOIMENTOS

  • 2 de março de 2024 em 19:24
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    Importante matéria sobre a grande Escola Guignard . Ricos depoimentos de ex-alunos, que narram a história de Guignard e seus alunos , que o sucederam como artistas e professores.
    A celebração dos oitenta anos da mais importante escola de artes plásticas de Minas.
    Parabéns aos artistas depoentes!

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  • 22 de abril de 2024 em 12:34
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    Lindo depoimento dos ex alunos da Escola Guignard. Até deu saudades da Escola nos porões do imponente Palácio das Artes, uma dicotomia harmônica. Ocupávam todos os espaços do entorno. Íamos carregando a expectativa no Coração, o branquinho em uma mão, toda a tranqueira necessária ao iniciado em Artes em outra mão por toda parte. Nos Jardins do Parque Municipal o desenho e a pintura rolavam solto sob os olhares dos transeuntes curiosos. E ainda sob estes olhares carimbávamos nossos corpos entintados rolando sobre um rolo de papel pardo com cada cor que então nos pertenciam. Delicioso Happening no passeio público em frente à fachada do Palácio das Artes. Tempos de chumbo coloridos por nós. Viva a Liberdade Guignariana!

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