A literatura histórica mineira ao tempo da Capitania – Mauro Werkema
O crítico literário Fábio Lucas, no seu “Luzes e trevas – Minas Gerais no século XVIII”, lembra que “num radio de 20 léguas e espaço de 20 anos, nasceram em Minas Gerais os quatro melhores poetas do século XVIII”: Cláudio Manoel da Costa (1729), na Vila de Ribeirão do Carmo (Hoje Mariana), José de Santa Rita Durão (1736), no distrito de Infeccionado, hoje Santa Rita Durão, José Basílio da Gama (1720), na Vila de São José del-Rei, hoje Tiradentes e Manoel Inácio Silva Alvarenga (174), em Vila Rica, hoje Ouro Preto. E coexistiram e conviveram na mesma época Tomás Antônio Gonzaga, em Ouro Preto, Inácio José de Alvarenga Peixoto, em São João del-Rei, e Francisco Melo Franco, de Paracatu. E todos, com exceção de Santa Rita Durão, inconfidentes e conviventes. Contemporâneos foram também vários outros nomes importantes que deixaram escritos, como os botânicos e naturalistas frei Joaquim Veloso de Miranda (1742), nascido em Santa Rita Durão, e José Mariano da Conceição Veloso (1747), de Tiradentes, e os mineralogistas José Vieira Couto (1752), nascido no Tejuco, hoje Diamantina, e Manoel Ferreira da Câmara e Bittencourt (1762), de Itacambira, que deixaram vários escritos sobre a Capitania, produção a que se juntam vários outros letrados, poetas e literatos que integram a rica e expressiva produção literária mineira no século XVIII.
Na Minas setecentista formou-se uma “Sociedade de pensamento” e que irá , nos anos de 1788/89, desenvolver o sonho de independência e república expresso na Inconfidência Mineira, a mais importante das revoltas mineiras contra o opressivo sistema colonial português. O “Iluminismo” mineiro que os inconfidentes revelam nos “Autos de Devassa”, em seus textos literários e suas bibliotecas, constituem um traço marcante da evolução intelectual e da consciência nativista da Capitania, que surge a 2 de dezembro de 1720 por Alvará do Rei Dom João V, após a rebeldia contra o então governador, Conde de Assumar, que tentava implantar a cobrança do quinto do ouro e estabelecer as casas de fundição. Ao celebrarmos os 300 anos da Capitania das Minas do Ouro, que se separa em 1720 da Capitania de São Paulo e passa a ter governo próprio, a fértil e rica produção literária se torna um traço distintivo que se insere na personalidade dos mineiros em sua tricentenária história, lembrada por Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, entre outros escritores, poetas e críticos literários, em vários textos. E será na “Minas minerária”, a “Minas inaugura!”, expressões de Guimarães Rosa, que surge e se forma a personalidade mineira, como revela a produção literária do século XVIII. Nela temos a origem desta formação intelectual dos mineiros e a sua reconhecida e distinta personalidade.
A fértil produção literária mineira setecentista é um fenômeno que decorre da Ilustração que acontece no Século XVIII, sobretudo a partir do movimento enciclopedista francês, e que pode ser definida como “uma proposta mais generosa de emancipação jamais oferecida ao gênero humano. Ele acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o seu destino, livre da tirania e da superstição (“As razões do Iluminismo”, Paulo Sérgio Rouanet, 1987). Rouanet diz que o Iluminismo, decorrente da Ilustração, prega uma “ordem em que o cidadão não fosse oprimido pelo Estado, o fiel não fosse oprimido pela religião e a mulher não fosse oprimida pelo homem”. Será neste tempo que o homem se livra da “verdade única”, representada pelas “Sagradas Escrituras”, imposta pela nova orientação religiosa da Igreja Católica que surge do Concílio de Trento, de 1549, com a Reforma que combate o Protestantismo e procura retomar seu poder, sua influência e sua visão do mundo e da vida, como uma dádiva divina. O homem, sobre a orientação iluminista, volta-se para a observação da natureza e de si próprio, surgem as ciências naturais, a observação da natureza e suas leis que governam a vida e o mundo.
A Ilustração é a possibilidade da consciência crítica e da transformação social pelo saber. É deste “caldo cultural”, marco distintivo da civilização mineira, que se forma nas cidades históricas um grupo de homens de pensamento, escritores, poetas, naturalistas, ilustrados, e que darão ao século XVIII mineiro uma literatura que se destaca na História do Brasil. A moderna crítica literária relativa à produção do período reitera outro princípio da Ilustração que diz que “ela se propunha a criticar todas as tutelas que inibem o uso da razão e julgava possível fazê-lo a partir da própria razão”. Laura de Melo e Souza ((“Civilização mineira”|) diz que será em Minas que “pode-se falar que existia, pela primeira vez na América Portuguesa, um verdadeiro sistema cultural”. Da Ilustração, que chega a Minas, consolida-se o sentimento de rebeldia, mais nítido no final do Século XVIII, traço que já distinguirá os mineiros por suas constantes revoltas contra o regime colonial português, explorador da colônia e que impedia o seu desenvolvimento autônomo.
Nos ensaios de caracterização da “alma mineira”, vista como um típico e distinto “caráter regional mineiro”, com destaque para a realidade encontrada nas cidades históricas mineiras mas sobretudo em Ouro Preto, distinguem-se Carlos Drummond de Andrade e João Guima- rães Rosa, com muitos textos. Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde) escreveu “A Voz de Minas”, ensaio sociológico e histórico em que demonstra seu conhecimento e dedicação a Minas e, especialmente, a Ouro Preto, que visitou várias vezes. Sua presença, expressão cultural e humanística, motivaram a criação do Grêmio Literário Tristão de Athayde (GLTA), pelo padre e educador José Pedro Mendes Barros, entidade até hoje atuante na promoção de eventos culturais. Sylvio de Vasconcellos, arquiteto e professor, publicou “Mineiridade”, que também procura decifrar o caráter do mineiro, além de vários escritos sobre história, evolu-ção arquitetônica de Ouro Preto, escreveu sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que com sua arte também revela o espírito libertário mineiro dominante na época. Pedro Nava e Afonso Arinos de Melo Franco, em vários textos, destacam visita feita a Ouro Preto e os significados culturais da tricentenária cidade.
Drummond, em Congonhas, perante o anfiteatro dos profetas de Aleijadinho, esculpidos ao tempo da Inconfidência de 1789, enxerga uma “assembleia insurgente”, em confabulação silenciosa sobre a “tragédia de Minas” e em contemplação ao “horizonte de montanhas” ricas de ferro. Hoje, ao lado, a maior barragem de rejeitos de minério de ferro, da CSN, é uma ameaça em discussão e conflito. Já antes, Drummond, na sua Itabira, apontara, em vários textos e poemas, o desmonte do Pico do Cauê e que legou à cidade quatro barragens, uma delas, a do Pontal, no local onde estava a fazenda de sua família. Em 1976, com seu poema “Triste Horizonte”, lamenta a destruição do perfil da Serra do Curral e impede sua desfiguração total. E já lamentara o desmonte do Pico de Itabirito, parcialmente impedido por tombamento pelo IPHAN.
Será o Movimento Modernista, a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, que redescobrirá as cidades históricas mineiras. Mário de Andrade vem pela primeira vez em Minas, especificamente a Mariana, para visitar o poeta Alphonsus de Guimaraens, em 1919, e descobre Ouro Preto, “em meio às montanhas, uma cidade histórica, cívica e cultural”. E organiza a famosa caravana de modernistas que vem a Minas em 1924. Mário escreve sobre Aleijadinho em 1926 e o lança ao conhecimento da cultura brasileira. Seguem-se várias publicações sobre a histórica cidade. Mais tarde, já com a criação do IPHAN, em 1937, sob orientação do pensamento modernista dos mineiros Gustavo Capanema, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, e o próprio Mario de Andrade, as cidades históricas mineiras, seu acervo patrimonial e sua literatura, ganham divulgação e expressão nacional.
É longa a lista de publicações sobre Ouro Preto elaboradas pelas equipes técnicas do IPHAN, entre relatórios, pareceres e estudos históricos, desde o tombamento de 1938, com destaque para seu diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lúcio Costa, este eminente estudioso da arquitetura colonial brasileira e a evolução das intervenções realizadas na cidade. Ouro Preto, afinal, por sua história, suas lutas pela afirmação nacional, pelo seu acervo patrimonial, tornou-se fonte e exemplos referenciais a partir dos quais se forma a nacionalidade brasileira, no surgimento do nativismo, nos ideais de independência, na campanha republicana, no traço da rebeldia, nos paradigmas culturais e políticos e por seu acervo artístico, entre outras singularidades e exemplaridades.
Ao comemorarmos os 300 anos da Capitania de Minas do Ouro é fundamental relembrar o quanto a produção literária mineira contribuiu para a formação do caráter regional, o despertar como povo e civilização e a influência decisiva de Minas Gerais no sentimento nativista e nas ideias de autonomia e liberdade, na Independência, no Império e na República.
MW/11.12.2020
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