Crônica – Ângela Monteiro

A LEI UNIVERSAL

Dois mil e vinte ainda espreguiçava quando a humanidade acordou assombrada e confusa. A multiplicidade de raças e culturas do planeta parou, em nome de um desconhecido mortal.

Desta vez, ninguém ficou de fora. europeus, asiáticos, africanos, americanos, povos da Oceania e Antártica estavam sob alerta. O medo e a incerteza sobre o desconhecido Corona atingiu toda a humanidade. Um susto que vai passar, pensamos. Mas para os brasileiros, o susto já dura seis meses e o que parecia temporário virou rotina.

No microcosmo da minha cidade, em casa, começo o meu dia preparando o café, tirando a mesa, lavando a louça. Depois, corro para as redes sociais, colocando em dia a comunicação virtual, enquanto dou um jeito na casa.

A esta altura, os mais animados já se exercitaram na frente da tv, já meditaram na live da manhã ou já correram na esteira.

O almoço, faço eu mesma ou peço no delivery. Depois, nada de sesta. É mais louça na pia da cozinha, roupa pra lavar, rodo pra passar no chão, o banheiro pra higienizar e perfumar.

Vez ou outra, chega a hora de colocar a máscara na face e conferir o álcool gel para ir à padaria, sacolão, supermercado.

De vez em quando tem consulta médica, dentista e outros cuidados necessários. Não dá para ter um isolamento total.

A volta ao esconderijo familiar é como uma cena de cinema mudo. Esfrego a sola do sapato no pano de água sanitária, coloco o chinelinho, tiro e lavo bem a máscara e as mãos.

Tudo rapidinho, junto e misturado. Mas sem direito à trilha do solo de piano.

Conforme o local de onde venho, troco de roupa e me encho de álcool. Não dá para esquecer o risco e acender o fogo para fazer um café ou para preparar o jantar.

A essa altura, com certeza já aconteceram muitas lives durante a tarde e outras estão programadas para a noite. E a pia da cozinha já está outra vez apinhada. Parece uma geração espontânea de copos, talheres, louças…

A filósofa feminista do existencialismo, Simone de Beauvoir, considerou o tema tão relevante que se posicionou assim sobre o serviço doméstico: ¨A dona de casa se desgasta com o passar do tempo: ela não faz nada, apenas perpetua o presente. A batalha contra a poeira e a sujeira nunca é vencida.”

Descobri esta percepção da mulher de Sartre há pouco tempo e fiquei mais fã ainda. A mulher, insatisfeita com a mesmice interminável do trabalho do lar, acabou conquistando novos espaços de realização pessoal.

Voltando à minha agenda da quarentena, o dia não pode acabar sem um tempo para colocar as idéias na telinha do notebook. Esse é um hábito novo que surgiu da noite para o dia, no maio desta quarentena, quando fui tomada pelo desejo de me expressar em uma nova linguagem, a forma escrita.

Sou da prosa, não dos versos e rimas, e tenho trocado prazerosas experiências com amigos leitores, por meio das minhas crônicas.

A vida está em constante transformação, assim como a natureza da qual fazemos parte. Enquanto vivo no meu abrigo doméstico, esperando a tormenta passar e a vacina chegar, vou fazendo o que deve ser feito, da maneira que dou conta, como dita a sabedoria.

Sem negar o perigo do momento, aproveito para agir, me permitindo inovar e mudar para tornar mais leve e construtiva a jornada nossa de cada dia, ao invés de simplesmente deixar a vida me levar.

(Ângela Monteiro, advogada)

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