LANÇAMENTO – ILUSÃO FATAL DE SILVANIA CAPANEMA
ILUSÃO FATAL
SILVANIA CAPANEMA
A mineira Silvania Capanema, jornalista e escritora, elege como tema de seu terceiro romance o grave problema do feminicídio. Alternando situações entre drama e comédia, vai destilando, em seu novo livro cujo cenário é a Belo Horizonte do final dos anos 1950, as razões culturais que levam tal tipo de crime a persistir na atualidade.
Em 2020, o Brasil registrou 1.338 casos de feminicídio. Mata-se por paixão, vingança ou suposta honra ultrajada. Muitos homens ocultam frustrações e desvios que os levam à violência e as mulheres escondem o vínculo de submissão e dependência em relação a seus companheiros. Iludidas pela crença de um amor que a tudo vence, desacreditam na morte anunciada até sobrevir o dia fatal.
Crimes de violência contra a mulher continuam aumentando, apesar do endurecimento da legislação em anos recentes. Contudo, a ideia de que se pode matar “por amor” e não ser punido permanece na mente do brasileiro. A apuração e o julgamento de crimes se arrastam por anos e os jurados costumam ser benevolentes com os amantes supostamente traídos.
Analisemos a questão do ponto de vista cultural e jurídico. É na Religião — o instrumento de dominação mais perfeito que a mente humana já criou — que estão as raízes mais profundas do patriarcado, sustentado na imposição do homem ter poder de vida e morte sobre a mulher como forma de controle da transmissão de genes e bens pela linhagem masculina. As filhas de Eva carregam a culpa do pecado original desde os primórdios da humanidade e, por esta razão, continuam sendo induzidas a sentirem-se responsáveis pelos males causados pela prepotência masculina.
No século XIX, com o advento do amor entre donzelas indefesas e cavalheiros apaixonados, o romantismo literário, estendido até final da década de 1950 pelos melosos filmes de romance de capa-e-espada, veio contribuir para o ideal da mulher frágil e submissa e do herói que mata para defender sua honra.
Vem da herança portuguesa um sistema penal patriarcal e discriminatório, pois as Ordenações Filipinas — conjunto de leis que vigoraram no país até a promulgação do primeiro Código Civil brasileiro, em 1916 —, permitia ao homem casado licitamente matar, em caso de adultério, tanto sua mulher quanto o amante, desde que este fosse de classe inferior à sua. Nas leis e códigos brasileiros, com o intuito de eliminar progressivamente a vingança privada, os crimes passionais nunca foram, de fato, explicitamente tratados. No Código Penal brasileiro de 1890, de influência positivista, abriu-se uma brecha para os criminosos passionais, todavia de forma atravessada pois destinava-se à proteção dos alienados, ao conceder impunidade aos que se achassem em estado de completa perturbação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime. Os advogados de defesa dos assassinos de mulheres passaram a defender a paixão como uma forma de loucura momentânea e os jurados, como bons cristãos, a perdoar os cornudos arrependidos. Tentando conter o irrefreável aumento dos crimes passionais, uma vez que os assassinos julgavam-se previamente absolvidos, o Código Penal de 1940 passa a permitir apenas a redução da pena de um sexto a um terço ao agente que comete o crime sob domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima — o chamado homicídio privilegiado.
Descontentes, os defensores dos matadores de mulheres, apoiados na cultura do patriarcado, criam a hipótese do crime por legítima defesa da honra para reduzir ou mesmo livrar seus clientes da aplicação das penas da lei. Honra é um princípio que diz respeito à boa conduta social de uma pessoa em relação a si mesma. Portanto, no Júri, a alegação da legítima defesa da honra em favor do marido ou amante supostamente traído, é usada em sentido deturpado pois seria plausível defender a sua própria honra e não a honra de terceiros. No entanto, a ideia machista de propriedade da mulher leva à crença errônea de que o homem toma a si a honra de outrem, achando-se no direito de matá-la para “lavar a sua honra” e voltar a ter o respeito da sociedade.
Na história jurídica brasileira, muitos foram e têm sido os casos de julgamentos nos quais famosos criminalistas defendem maridos suposta ou comprovadamente traídos por suas esposas, obtendo sua liberdade ou drástica redução da pena.
Malgrado os progressos da sociedade em defesa das mulheres criando as Delegacias de Mulheres, fazendo cumprir a “lei Maria da Penha” e constituindo o feminicídio como parte integrante do Código Penal, muitíssimo mais grave têm sido os casos que, infelizmente, vêm crescendo de maneira assustadora, de namorados e amantes, que por julgarem-se donos exclusivos de suas companheiras, cruelmente as matam ao menor sinal de rejeição.
ILUSÃO FATAL narra a apuração e o julgamento de um crime típico de feminicídio, em Belo Horizonte, no final dos anos cinquenta — época de significativas mudanças de costumes e de mentalidade.
Duas foram as razões que levaram-me a escrever este livro. Em primeiro lugar, as pessoas comuns, e até mesmo dentre estas, aquelas que, porventura, possam participar de um Júri como juradas, desconhecem as inconsistências que, na maior parte das vezes neste imenso país, permeiam os inquéritos policiais e os processos judiciais que antecipam o Júri. Na hora do julgamento, tem-se o que consta dos autos e o que realmente vale é a versão subjetiva dos fatos e não a objetividade do fato em si. Em tempos de ampla difusão de notícias via internet, múltiplas interpretações do fato e as perigosas fake news influenciam a opinião pública, fator relevante na decisão dos jurados. Com o intuito de explicitar a condução de um caso típico de feminicídio, a narrativa é dividida conforme as fases do processo. O narrador é um jornalista que, na posição de observador, traz ao leitor tanto a informação institucional e a opinião pública quanto mostra os bastidores onde são criadas as estratégias da acusação e da defesa para a confrontação no Júri.
Em segundo lugar, mas a meu ver mais importante, é mostrar o lado oculto da história, no sentido de uma advertência às mulheres. Criadas dentro de um sistema paternalista sufocante, oprimidas pelo machismo, pela religiosidade, pela hipocrisia da sociedade onde todos expõem uma máscara de sucesso e felicidade, e muitas vezes, pela responsabilidade de cuidar dos filhos, as mulheres sofrem caladas a violência de seus companheiros. Tendo como escape o romantismo e a eterna ilusão do amor, acreditam que podem resistir aos maus-tratos do marido ou do amante na esperança de dias melhores. Afundam-se em uma posição de total omissão em relação a si mesmas, têm vergonha e medo de expor-se e de pedir socorro e … um triste dia, terminam mortas.
Contato: silcapanema@gmail.com